17/08/2005

A vida como fabricação de si mesma: técnica e desejos

Nota - Esta é uma das aulas de um curso oferecido pelo autor em 1933 na Universidade de Verão de Santander. A publicação é de 1939 e é um dos capítulos do livro Meditação sobre a técnica, trad. José Francisco P. de Almeida Oliveira, Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1991.


Ortega y Gasset

(...) Em suma, os homens são enormemente desiguais, contrariamente ao que afirmavam os igualitaristas dos dois últimos séculos e continuam afirmando os arcaicos do presente.

Sob essa perspectiva, a vida humana, a existência do homem, consiste formalmente, essencialmente, em um problema. Para os demais entes do universo, existir não é problema – porque existência deve significar efetividade, realização de uma essência --; por exemplo, que “o ser touro” se verifique, aconteça. Pois bem, o touro, se existe, existe já sendo touro. Em troca, para o homem, existir não é já existir, sem mais nem menos, como homem que é, mas é mera possibilidade disso e esforço até consegui-lo. Quem de vocês é efetivamente o que sente que teria de ser, que deveria ser, que aspira a ser? Diferentemente, pois, de todo o resto, o homem, ao existir, tem de resolver o problema prático de realizar o programa em que prontamente consiste. Donde se conclui, que nossa vida é pura tarefa e inexorável que-fazer. A vida de cada um de nós é algo que não é dado pronto, presenteado, mas algo que se tem de fazer. A vida dá muito que-fazer; entretanto, não é senão esse que-fazer que ela dá a cada um, e um que-fazer, repito, não é uma coisa, mas algo ativo, num sentido que transcende todos os demais. Porque, no caso dos outros seres, supõe-se que alguém ou algo que já é, atue; aqui, porém, trata-se precisamente de que, para ser, tem-se que atuar, que apenas se é essa atuação. O homem, queira ou não, tem de fazer-se a si mesmo, autofabricar-se. Esta última expressão não é de todo inoportuna. Ela sublinha que o homem, na raiz mesma de sua essência, se encontra, antes de mais nada, na situação do técnico. Para o homem, viver é – desde logo e antes de tudo – esforçar-se para que haja o que ainda não há; ou seja, ele, ele mesmo, aproveitando para isso o que há, em suma, para o homem, viver é produção. Com isso, quero dizer que a vida não é fundamentalmente como se acreditou durante tantos séculos, contemplação, pensamento, teoria. Não! A vida é produção, fabricação, e somente porque estas o exigem – portanto, depois e não antes --, é pensamento, teoria e ciência. Viver é descobrir os meios para realizar o programa que se é. O mundo, a circunstância, se apresenta desde logo como matéria-prima e como máquina possível. Posto, que, para existir, tem-se que estar no mundo, e isso não realiza por si e totalmente o ser do homem, impõe-lhe, ao contrário, dificuldades, o homem decide buscar em sim mesmo a máquina oculta que encerra, para servir a sim mesmo. A história do pensamento humano se reduz à série de observações que o homem tem feito para trazer à luz, para descobrir essa possibilidade de máquina que o mundo carrega latente em sua matéria. É por isso que o invento técnico é chamado também de descobrimento. E não é, com veremos, uma casualidade que a técnica por antonomásia, a plena maturidade da técnica, se tenha iniciado por volta de 1600; justamente quando, em seu pensamento teórico sobre o mundo, o homem passou a entendê-lo com uma máquina. A técnica moderna começa a ter unidade com Galileu, Descartes, Huygens; em suma, com os criados da interpretação mecânica do universo. Assim se acreditava que o mundo corporal era um ente amecânico, cujo ser último era constituído por poderes espirituais mais ou menos voluntariosos e incoercíveis. O mundo como puro mecanismo é, ao contrário, a máquina das máquinas.

É, portanto, um erro fundamental crer que o homem é tão somente um animal casualmente dotado de talento técnico ou, dito de outra forma, que, se acrescentássemos magicamente a um animal o dom técnico, teríamos simplesmente o homem. A verdade é o contrário; porque o homem, tendo uma tarefa muito diferente da do animal – uma tarefa extranatural --, não pode dedicar todas as suas energias, como aquele, para satisfazer suas necessidades elementares, mas tem de imediatamente poupá-las nesse sentido, para, com elas, poder entregar-se à improvável faina de realizar seu ser no mundo.

Eis aqui por que o homem começa quando começa a técnica. O espaço menor ou maior que esta abre para o homem na natureza é o alvéolo onde ele pode alojar seu excêntrico ser. Por isso, eu insistia, ontem, que o sentido e a causa da técnica estão fora dela; ou seja, no emprego que o homem dá às energia que lhe sobram, energias economizadas pela técnica. A missão inicial da técnica é esta: dar liberdade ao homem para ele poder entregar-se a si mesmo.

Os antigos dividiam a vida em duas zonas: uma, que chamavam de otium, o ócio, que não é a negação do fazer, mas é dedicar-se a ser o humano do homem, que eles interpretavam como autoridade, organização, trato social, ciências, artes. A outra zona, em que se dava pleno esforço para satisfazer as necessidades elementares, isto é, tudo o que tornava possível aquele otium, chamavam-na de nec-otium, assinalando muito bem o caráter negativo que tem para o homem.

Em vez de viver ao acaso e combater seu próprio esforço, o homem necessita atuar segundo um plano para obter segurança em seu choque com as exigências naturais e dominá-las com um máximo de rendimento. Este é seu fazer-técnico frente ao fazer-ao-bel-prazer do animal, ao fazer do pássaro do bom Deus, por exemplo.

Todas as atividades humanas que têm recebido ou merecem especialmente o nome de técnicas não são mais que especificações, concretizações desse caráter geral de autofrabricação próprio do nosso viver.

Se nossa existência não fosse, desde o princípio, a obrigação de construir com o material da natureza a pretensão extranatural que é o homem, nenhuma dessas técnicas existiria. O fato absoluto, o puro fenômeno do universo que é a técnica, só pode acontecer nessa estranha, patética, dramática combinação metafísica, na qual dois entes heterogêneos – o homem e o mundo – se vêem obrigados a unificar-se, de modo a que um deles, o homem, consiga inserir seu ser extramundano no outro, que é precisamente o mundo. Esse problema, quase de engenharia, é a existência humana.

E, sem dúvida, ou pelo mesmo motivo, a técnica não é, a rigor, o primeiro fenômeno. Ela vai idealizar e executar a tarefa que é a vida; vai conseguir obter, numa ou noutra medida limitada, está claro, que o programa humano se realize. Mas, por si só ela não define o programa; quero dizer que à técnica não é preestabelecida a finalidade que ela deve alcançar. O programa de vida é pré-técnico. O técnico ou capacidade técnica do homem tem como encargo inventar os procedimentos mais simples e seguros para conseguir as necessidades do homem. Estas, porém, como vimos, são também uma invenção; são o que, em cada época, povo ou pessoa, o homem pretende ser; há, pois, uma primeira invenção pré-técnica, a invenção por excelência, que é o desejo original.

Não se creia que se trata de desejar tarefa tão fácil. Observem vocês a angústia específica que experimenta o novo rico. Tem nas mãos a possibilidade de obter a consecução de seus desejos, mas se percebe como quem não saber ter desejos. No fundo mais secreto de sim mesmo nota, que não deseja nada, que sozinho é incapaz de orientar seu apetite e decidir entre as inumeráveis coisas que o meio lhe oferece. Por isso busca um mediador que o oriente e o descobre nos desejos que predominam sobre os demais. Eis por que a primeira coisa que o novo rico compre é um automóvel, um piano e uma aparelhagem de som. Encarregou os outros de desejarem por ele. Como há o princípio do pensamento, que consiste na idéia que não é pensada originalmente por aquele que a pensa, mas é tão somente repetida por ele, cegamente, mecanicamente reiterada, há também um determinado desejo que é bem mais a ficção e o simples gesto de desejar.

Isso acontece, pois, mesmo na esfera do desejar referente ao que já existe por aí, às coisas que já temos em nosso horizonte antes de desejá-las. Imagine-se até que ponto será difícil o desejo propriamente criador, o que postula o inexistente, o que antecipa o que ainda é irreal. Definitivamente, os desejos referentes a coisas se movimentam sempre dentro do perfil do homem que desejamos ser. Este é, portanto, o desejo radical, fonte de todos os demais. E quando alguém é incapaz de desejar-se a si mesmo, porque não tem bem claro um si mesmo a realizar, é evidente que não tem senão pseudodesejos, espectros de apetites sem sinceridade nem vigor.

Talvez a doença básica de nosso tempo seja uma crise dos desejos e, por isso, toda a fabulosa potencialidade de nossa técnica parece não nos servir para nada. Hoje, a coisa começa a tornar-se patente, mas, já em 1921, me ocorria anunciar o grave fato: “A Europa padece de um extremo cansaço em sua faculdade de desejar”. (España invertebrada). E essa inibição do programa de vida trará consigo uma interrupção ou retrocesso da técnica, que acabará por não saber bem a quem ou a que servir. E esta é a incrível situação à qual chegamos e que confirma a interpretação aqui sustentada: a herança, quer dizer, o repertório com que o homem conta hoje para viver não é apenas incomparavelmente superior ao repertório de que jamais ele desfrutou (as forças criadas com a técnica equivalem a dois bilhões e meio de escravos, ou seja, dois para cada cidadão), mas nos dá a consciência clara de que tais forças são superabundantes e de que, sem dúvida, a irracionalidade é enorme; e acontece que o homem atual não sabe o que ser, falta-lhe imaginação para inventar o argumento de sua própria vida.

Por que? Ah! Isso não faz parte deste ensaio. Apenas nos questionaremos: o que é o homem, ou que tipo de homens são os especialistas do programa de vida? O poeta, o filósofo, o fundador de religião, o político, o descobridor de valores? Não o decidamos. Basta advertir que o técnico supõe todos eles e que isso explica uma diferença hierárquica que sempre existiu e contra a qual não adianta protestar.

Talvez tenha algo a ver com isso o estranhíssimo fato de que a técnica é quase sempre anônima, ou, pelo menos, que os seus criadores não gozem da fama nominativa que sempre acompanhou aqueles outros homens. Um dos inventos mais formidáveis dos últimos sessenta anos foi o motor a explosão. Pois bem, quantos de vocês, sem ser por seu ofício técnico, se lembram, nesse momento, da lista dos egrégios nomes de seus inventores?

Conclui-se daí, também, a enorme improbabilidade de que se venha a constituir uma “tecnocracia”. Por definição, o técnico não pode comandar, dirigir em última instância. Seu papel é magnífico, venerável, mas irremediavelmente de segundo plano.

Resumamos:A reforma da natureza ou técnica, como toda troca ou mutação, é um movimento com seus dois pólos, a quo e ad quem (de que e para que). O pólo a quo é a natureza como está aí. Para modificá-la tem-se que fixar o outro pólo ao qual a natureza deve se adequar. Este pólo ad quem é o programa de vida do homem. Como denominaríamos a plena consecução deste programa? Evidentemente, bem-estar do homem, felicidade. Eis que com isso, encerramos aqui as idas-e-vindas de todas as considerações tecidas anteriormente.

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