04/09/2010

AS FESTAS E O ASCETA

Do livro A Coisa, 1929
Gilbert Keith Chesterton

Nota do blog: Chesterton nos dá uma aula de apologia católica, tratando de um dos assuntos mais interessantes do catolicismo: a alegria cristã e a necessária e pemanente prática da penitência e da mortificação como caminho de nossa santificação. É assunto ligado à teologia ascética e mística, tratada amplamente por Pe. Tanquerey em seu Tratado de Teologia Ascética e Mística. Aqui Chesterton mostra como se pode falar de assuntos complicadíssimos de forma clara e simples, mesmo quando somos confrontados por pagãos altamente ignorantes.

Estava refletindo durante a recente festa de Natal (que, como outras festas, é precedida por um jejum) que a combinação é ainda um enigma para mim. O modernista, ou o homem que se gaba de ser moderno, é geralmente muito parecido com o homem que come tanto na véspera que não tem fome no Natal. Isto é chamado “estar à frente do tempo”; e é característica de todos que são progressistas, proféticos, futuristas e que geralmente estão mirando o que o Sr. Belloc chama de a Grande Aurora Rósea; uma aurora que parece muito mais rósea na noite anterior que na manhã seguinte.

A muitas pessoas, todavia, que não estão ofensivamente à frente do tempo, a combinação dessas idéias parece realmente ser um tipo de contradição ou confusão. Mas, na verdade, ela não é nem tão confusa, nem tampouco tão complicada. A grande tentação do católico no mundo moderno é a tentação do orgulho intelectual. É tão óbvio que a maior parte de seus críticos fala sem minimamente saber do que está falando, que ele é, às vezes, um pouco provocado a usar uma lógica muito anti-cristã, que é a de responder um tolo segundo sua tolice. Ele fica um pouco disposto a deleitar-se em segredo, por assim dizer, com a filosofia muito mais rica e sutil que ele herdou; e apenas responder ao perplexo bárbaro de forma a torná-lo ainda mais perplexo. Ele é tentado a concordar ironicamente ou mesmo a se disfarçar de ignorante. Homens que possuem uma elaborada defesa filosófica de seus pontos de vista às vezes se comprazem em jactar-se da credulidade infantil dos outros. Tendo alcançado seus próprios objetivos por meio dos labirintos da lógica, eles indicarão ao estranho somente o mais curto atalho de autoridade; apenas a fim de chocar o simplório com a simplicidade. Ou, como no caso presente, eles encontrarão um divertimento amargo em apresentar as partes separadas de um esquema, como se elas fossem realmente separadas; e em deixar o observador externo fazer delas o que ele conseguir. Assim, quando alguém diz que um jejum é o oposto a uma festa, e ainda que ambos nos pareçam sagrados, alguns de nós serão sempre movidos a dizer, “Sim,” e a dar uma condenável gargalhada. Quando o ansioso investigador ético diz, “O Natal é devotado à fabricação de alegria, a comer carne e beber vinho, e mesmo assim você incentiva este divertimento pagão e materialista,” você ou eu seremos tentados a dizer, “Muito bem, meu garoto,” e a deixar a coisa como está. Quando ele então diz, parecendo até mais preocupado, “E mesmo assim você admira os homens por jejuarem em cavernas e desertos e por se negarem prazeres comuns; você está claramente comprometido, como os budistas, com o oposto, ou seja, com o princípio ascético,” estaremos igualmente inspirados a dizer, “Correto, companheiro,” ou “Percebo isto pela primeira vez, caro amigo,” e a propor apenas um adiamento para nossa alegre refeição.

Todavia, é uma tentação a ser resistida. Não somente é óbvio que é nossa obrigação explicar aos outros que o que lhes parece contraditório é realmente complementar, mas também que não estamos em absoluto justificados no uso de tal tom de superioridade. Não estamos agindo corretamente quando fazemos de nossa cordialidade uma expressão de nosso desespero; tampouco é assim tão horrivelmente difícil de explicar. A real dificuldade não é tanto que o crítico seja tosco, mas que nós próprios não somos sempre claros, mesmo em nossa própria mente, muito menos em nossas exposições públicas. Não é tanto que eles não sejam sutis o suficiente para entender, mas que eles, nós e todo mundo não somos simples o suficiente para entender. Aquelas duas coisas são parte de uma única coisa, se formos diretos o suficiente em olhar a coisa; e vê-la simplesmente como ela é. Sugeri recentemente que as pessoas deveriam ver a história cristã como se ela fosse contada como uma história pagã. A Fé é simplesmente a história de um Deus que morreu pelos homens. Mas, estranhamente, se escrevêssemos as palavras sem o G maiúsculo, como se fosse o culto de alguma tribo nova e desconhecida, muitos perceberiam a idéia pela primeira vez. Muitos sentiriam o arrepio de um novo temor e afinidade se simplesmente escrevêssemos: “a história de um deus que morreu pelos homens”. As pessoas se surpreenderiam e diriam: que bela e tocante seria aquela religião pagã.

Vamos supor, como argumento, que a Igreja não seja considerada; que não temos nada senão a terra e os filhos dos homens nela vagando, com suas lendas e tradições ordinárias e mortais. Então, suponha que aparece nesta terra um prodígio, um portento, ou um suposto portento. De algum modo o céu rasgara o véu ou os deuses deram alguma nova maravilha à humanidade. Suponha, por exemplo, que seja uma fonte de água mágica que, conta-se, flui do alto de uma montanha. Ela abençoa como água sagrada; cura as doenças, inspira mais do que o vinho, ou os que a tomam nunca mais sentem sede. Bem, essa história pode ser verdadeira ou falsa; mas entre aqueles que a difundem como verdadeira, é perfeitamente óbvio que a história produzirá uma série de outras histórias. É igualmente óbvio que tais histórias serão de dois tipos. O primeiro tipo de história dirá: “Quando a água descia ao vale, havia dança em todas as vilas; os jovens e as donzelas regozijavam-se com a música e riso. Um marido ríspido e sua esposa foram borrifados com a água sagrada e se reconciliaram e assim seu lar ficou cheio de alegres crianças. Um aleijado foi borrifado e começou a saltar alegremente como um acrobata. Os jardins foram aguados e se tornaram alegres com flores,” etc. É igualmente muito óbvio que haverá outro tipo de história, exatamente da mesma fonte, contada exatamente pelo mesmo motivo. “Um homem coxo se arrastou centenas de quilômetros, até que ele quase já não conseguia andar, para encontrar a fonte sagrada. Os homens se deitavam alquebrados e sangrando por sobre as pedras da encosta da montanha em seus esforços para escalá-la. Um homem vendeu suas terras atravessadas por rios em troca de uma gota da água. Um homem recusou-se a retroceder, quando confrontado por bandoleiros, mas foi torturado e morreu clamando por ela,” etc. Não há nada minimamente inconsistente nestes dois tipos de lendas. Elas são exatamente o que seria naturalmente esperado, dado a lenda original da fonte milagrosa. Qualquer um que possa realmente olhá-las simplesmente pode ver que elas são ambas igualmente simples. Mas nós, em nosso tempo, temos nos confundido com longas palavras para distinções irreais; e falado incessantemente sobre otimismo e pessimismo, sobre ascetismo e hedonismo, sobre o que chamamos de paganismo e o que pensamos do budismo, até que não conseguimos entender uma simples lenda quando ela é contada. O pagão a teria entendido muito mais.

Esta verdade tão simples explica outro fato sobre o qual ouvi o homem culto insistir com algum entusiasmo: a ênfase e repetição no que concerne ao lado ascético da religião. É exatamente o que aconteceria com qualquer história humana, mesmo se ela fosse uma história pagã. Notamos mais o caso do homem que se priva da comida para conseguir a água do que o caso do homem que simplesmente se alegra em conseguir a água. Notamo-lo mais porque é mais notável. Qualquer tradição humana valoriza mais os heróis que sofrem por algo do que os seres humanos que simplesmente se beneficiam dele. Mas isso não altera o fato de que há mais seres humanos do que heróis; e que esta grande maioria de seres humanos tem se beneficiado disso. É natural que os homens se maravilhem mais com o homem que deliberadamente se arrasta coxeando do que com o homem que dança, quando não é mais coxo. Isso não altera o fato de que países onde aquela lenda prevalece são, de fato, repletos de dança. Aqui apenas sugeri quão simples é, afinal, a contradição entre austeridade e alegria, que estarrece tanto nossos críticos. Há uma aplicação mais elevada disso aos ascetas, que talvez eu considere em outra ocasião. Aqui apenas a insinuarei dizendo: “Quanto mais o homem puder VIVER somente da água, mais ele se certificará de que ela é a água da vida.”

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